Para alguns, a infancia foi marcada por desenhos animados. A minha também, claro. Porém, a minha recordacao infantil mais vívida é ironicamente de uma série alema sobre adolescentes cuja existencia se encontrava terrivelmente condicionada pelo Muro de Berlim. Lembro-me do cinzentao da cidade, da áurea de terror que lhes minava os movimentos, da insubserviencia que lhes alimentava a motivacao, da sensacao de que cada passo estava a ser objecto de observacao dos agentes infiltrados. Nunca mais consegui encontrar referencias a esta série, a memória tratou de me roubar o seu nome, nao consigo recordar-me de quaisquer nomenclaturas nem das personagens fictícias. É nestas ocasioes que a memória selectiva me irrita profundamente. Mas, lutando contra as perdas do tempo, retive uma expressao que me tem acompanhado ao longo deste meu percurso, ouvida pela primeira vez num dos episódios dessa série perdida nos anais da televisao: Terra de Ninguém. Niemandsland. A língua alema tem destes fascínios, há expressoes, muitas vezes em forma de uma só e singela palavra, para tudo, desde situacoes ou objectos a estares de alma. Ao contrário do que pensamos em Portugal, nao detemos o monopólio sobre a palavra Saudade (Sehnsucht). Quanto ao verdadeiro sentir, aí a coisa já é bem diferente. Nao conheci, em dez anos de percurso migratório com história bem sucedida de integracao, um alemao que conseguisse sentir a saudade como nós, profunda e dolorosamente.
E, desderrapando, a Terra de Ninguém simbolizava um estreito, um pedacinho de território subterraneo entre a Alemanha de Leste e a República Federal, o qual nao pertencia nem a uma nem a outra. Era aí que o grupo se refugiava e se entregava a uma liberdade virtual porque momentanea, confinada a esse espaco e ao tempo em que podiam esquecer-se em que realidade se moviam. Sempre quis conquistar um refúgio semelhante, no qual me pudesse perder em fantasias e imaginar o mundo tal como eu o queria, para outros e para mim. Um mundo que nao pertencia a ninguém.
Hoje, estou presa nesse mundo, físico, porque me sinto uma cidada de Ninguém. Estou entre fronteiras, mentais. Vivo em vários universos, micro-cosmos distintos de contextos, costumes, línguas, mentalidades, visoes, necessidades, raciocínios, paixoes, comodidades. É o país que carrego em mim e pelo qual sinto emocoes nao susceptíveis de qualquer fundamentacao racional, o que me está contido nos genes, que constitui a minha história primordial, o que me deixa ser eu, que me deixa triste e pensativa por nao corresponder à Terra de Ninguém da minha infancia, pelo qual presentemente nao consigo sentir orgulho, sentimentozinho negativo derivado de um ego colectivo, mas que nos liga a alguma coisa e nos faz sentir mais palpáveis e nos forma a consciencia de pertencer a um todo que é maior do que a nossa individualidade.
Há um outro país, igualmente dérmico, mas mais remoto no tempo, onde me re-descobri sobretudo pelo início solitário que me obrigou a partir a casca protectora e a expor-me se quisesse evitar o abismo dos anti-descobrimentos. Foram tempos iluminados pela chama da ingenuidade pueril que conservamos acesa dentro de nós enquanto navegadores no mar das experiencias, até um primeiro temporal a apagar.
Exploro agora um outro país, um que me acolheu, nao de bracos estendidos, ah nao, primeiro aprende-se a conhecer, só depois se toma a decisao se se gosta ou nao. O país que me deu oportunidades para crescer em pragmatismo e eficiencia (e uma semente só pode vingar se o solo for fértil, digo eu), para desenvolver a nocao do correcto e adequado, para reconhecer o valor da previsibilidade como garante de seguranca, afinal sabe mesmo muito bem saber com que se pode contar.
Movimento-me entre eles, ignorando as fronteiras que mesmo dentro de mim se foram soerguendo com o tempo.
Onde pertenco? A todos eles. E a lado nenhum. A uma Dazwischenland, terra intermédia, entre alguma coisa e coisa nenhuma.
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