12/11/10

A cultura circulando pelas ruas da amargura

Enquanto uns deixam ruir símbolos da Antiguidade, considerados patrimónios da Humanidade, por falta de verbas e outros as utilizam para financiar promocoes oblíquas e no mínimo bizarras da cultura regional - e ainda as acham legítimas -, eu vou aplicando o meu entretanto reduzido ao mínimo fundo de maneio em iniciativas culturais no ambito do evento "Essen - Capital Europeia da Cultura 2010". Normalmente aposto no desconhecido, completamente às escuras, nao sigo instincto nenhum, deixo-me conduzir por uma vontade enorme de acreditar que irei passar um bom bocado, alheada a esta realidade tao próxima.
Hoje foi a vez de uma peca de teatro, L'effet de Serge, encenada por Philippe Quesne, frances devidamente credenciado, até com público do Georges Pompidou. Perante esta sinopse - "It somehow communicates the essence of theater itself. It demonstrates how the simplest object, the merest gesture, can produce wonder."-, foi-me difícil resistir. Dever-me-ia ter concentrado no significado profundo de "SOMEHOW", mas nao, ignorei-o redondamente.
Foram 75 minutos de martírio, sentimentos misturados, ansiedade extrema por ver o tempo a passar e eu sem poder exprimir uma emocao que nao o tédio. Aliás, os sentimentos no público eram de facto incrivelmente diversos: a pessoa do meu lado direito nao parava de soltar risadinhas, até nas cenas intermédias de silencio, menos insólitas e portanto, neste contexto, mais insignificantes, o que me estava deveras a enervar, enquanto que a pessoa do lado esquerdo deixava pender a cabeca, nao sei se rendida ao cansaco ou ao enfado. A história? Alguém, Sérgio, ser solitário e entregue à rotina que compoe os dias, co-habita um apartamento espartanico e desprovido de tudo o que seja sinal de comforto ou humanismo, mais parecido com um atelier de artista pouco motivado, com engenhocas capazes de produzir efeitos especiais. Sao estes, e apenas estes, o que seus amigos procuram quando o vao visitar uma vez por semana. Chegam, despem o casaco, poe-se confortáveis na medida do possível, descansam o corpo em cadeiras de madeira que Sérgio meticulosamente posiciona no espaco de exposicao. Um copo de vinho é servido. O espectáculo especial, invariavelmente acompanhado por génios musicais, dura pouco. Os convidados, após tecerem os mais variados elogios ao que acabaram de presenciar, apressam-se a terminar o vinho de forma a que o anfitriao, numa miscelanea de desconforto e heremitério, os acompanhe à porta. Uns sucedem-se aos outros, mas nunca simultaneamente. Até ao dia em que aparecem todos, um casal, sem vida, emocao ou interesse, uma rapariga que nao consegue esconder o seu interesse mais carnal pelo artista, um idoso que se move a bicicleta e parece absorver vinho como se disso dependesse a sua sobrevivencia, uma senhora de ar desconfiado que explora o espaco alheio, um rapaz acompanhado pelo seu cao (o único a ser ouvido da plateia). Chegam, sentam-se, conversam, observam, apreciam, comentam, comem fast-food e despedem-se. Nada mais. O show chega ao fim.
A minha expressao facial passou do aborrecimento ao ponto de interrogacao. A plateia aplaudiu de tal forma entusiasta que os actores foram obrigados a agradecer e regressar ao palco quatro vezes. QUATRO VEZES? Se tivesse sido uma peca de génio, aposto que os mesmos apreciadores literados ficariam no teatro o resto da noite, aplaudindo até as palmas das maos accionarem o alarme aos bombeiros.
Um único momento houve que me agradou. Sérgio prepara como efeito especial a uma das convidadas um laser, verde e muito 80s, projectado na parede suja e esvaziada do apartamento, cuja forma se vai modificando ao som da melodia de John Cage. A projeccao nao dura mais do que um minuto. No final, em sinal de amabilidade, cortesia ou complexo de superioridade (digo eu), tece os comentários devidos e muito elaborados, para mim transcendentes. Os espectadores riem-se a bandeiras despregadas. Eu sorrio. Porque fico a pensar se terao percebido a ironia da situacao e terao deixado as suas próprias apreciacoes tao intelectuais para aquelas horas pós-espectáculo no barzinho do teatro, onde tantas almas gémeas perdidas parecem reencontrar-se.


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