15/11/10

Há momentos assim...

Nunca gostei muito de domingos. Em circunstancias normais, constituem dias de antecipacao. Sou uma pessoa incapaz de gozar completamente o momento sem comecar a pensar no que me espera nos minutos, horas, dias seguintes. Jamais consegui deixar-me absorver por completo. Aguardo ansiosamente a minha primeira sessao de meditacao, que terá lugar já amanha.
No último domingo do meu passado remoto, maneira sobeja de me referir a ontem, deambulava pelas paredes que me confinam, perdida no tempo que tenho em demasia. Tinha passado a manha a navegar, o início da tarde acompanhada pelas notícias palpáveis do jornal, até estas se terem turvado por completo à minha frente. Sinal de mudanca. Ergo-me do sofá, caminho até à janela, perscruto o tempo, com esperancas de que mais uma tempestade com nome feminino tivesse deixado de grassar a zona. A chuva continuava a fustigar violentamente, qual gesto de vinganca, os obstáculos que ia encontrando no seu percurso incontrolável. Impaciente, rendo-me a uma tentacao. Poderia ligar os meus binóculos. Nao, nao me refiro àqueles que se usam para observar as aves raras da vizinhanca, mas uns outros, de forma rectangular, cuja dimensao parece ser inversamente proporcional à dimensao dos computadores, que me conectam directamente com o mundo real, imaginado pelos imperialismos modernos, aqueles que definem o que é correcto e socialmente aceitável, e que me moldam o espírito até à mórbida estupidez.Cedi, afinal o entretenimento é tao fácil. E pleno de surpresas.
Deixei-me estar ligada a um canal cujos conteúdos agradam normalmente a uma classe média alta, maioritariamente masculina, e que nao esconde a sua preferencia pela tecnicidade da realidade, ou nao fosse este um canal alemao. Desta vez mostram o desenvolvimento na construcao do Mundo Ferrari em Abu Dhabi, o maior parque interior de diversoes do mundo. Mundo Ferrari, pergunto-me, estarrecida? Em tempos de contencao, aquecimento global e endemonizacao do petróleo, veem estes celebrar-se a si mesmos desta forma despropositadamente pomposa? Sim, e assim acontece. Nao se tratava de um documentário ficcional e sim altamente infornativo, a tal da pura realidade. Tao nua e crua. Porque soubemos que a marca Ferrari nao sofre com a crise (é tao ou nada interessante que já há rumores de que a VW intenciona adquiri-la), que continua a haver investidores com fundos de porte gigantesco dispostos a investir em luxo, puro e duro, que há quem disponha do suficiente para gastar €45 por pessoa num parque de diversoes (para nao falar na viagem), que os chefes de departamento e gestores de projecto nao sao naturais do país onde o mamute é edificado e sao sim, na sua maioria, anglo-saxónicos ou escandinavos (isto quererá dizer que a concentracao de neurónios operativos respeitará algum paradigma geográfico?), ou seja, brancos (ah, a tal da raca), que a maior parte dos trabalhadores que limpam tres vezes por dia (e à custa de 3000 litros de água) o telhado do edifício ou enceram o chao do food court ou pregam os parafusos dos aparelhinhos que seguram o papel higiénico nas casas de banho de mármore apresentam uma tez escurinha, diria mesmo de sub-continente.
A estes seres reconhece um dos cara-pálidas, de seu nome Robert, um grande privilégio durante a preparacao da apresentacao do espaco. "Quem é que já nao sonhou com o momento de empurrar um Ferrari por uma rampa acima, hein? Nao é para qualquer um..." Tirando o facto de o bicho ter umas toneladas a mais em relacao a outros da mesma espécie, pensei eu para com os meus botoes: Realmente esse privilégio só poderá ser equiparado a limpar a sanita de ouro do presidente do Uzbequistao.

E foi assim que o meu domingo se tornou menos cinzento e mais dourado.

Sem comentários:

Enviar um comentário